29 agosto, 2007

149 – o ginasta

Cospe nas mãos – primeiro uma, depois outra – e esfrega-as uma nas outra. Olha em redor e fecha os olhos. Levanta os braços e volta a baixá-los. Junta os pés. Respira fundo. De expressão concentrada, ainda de olhos fechados, levanta os braços lentamente até que as mão sentem as pegas. Agarra-se e eleva-se. Por instantes, fica absolutamente imóvel no ar, antes das pernas começarem a curva para si próprio. Com o corpo fechado como um bicho de conta, roda até prefazer 360 perfeitos. Chega ao chão suavemente – os pés ainda juntos – pousando sem hesitações. Sobe a cabeça, o tronco, até as costas ficarem direitas. Respira fundo. Levanta os braços e volta a baixá-los e abre os olhos.
No autocarro, ninguém bate palmas.

22 agosto, 2007

149

A crianca é igual à mãe. Vai sentada tal e qual: costas curvadas por uma carga invisível; olhar em frente mas vago para que não se direccione a alguém específico; as mãos espremidas uma na outra sobre o colo.
A crianca está prestes a chorar, e também nisso é igual a mãe: contém um choro adulto.

15 agosto, 2007

Atravessar a rua

O semáforo fica verde. O motorista do autocarro suspira por si e pelos seus passageiros, e não se mexe. Os condutores dos automóveis mexem ligeiramente o pé direito consolados no ruído movimentado do acelerador. Os peões olham para o autocarro e para os carros parados; olham para o semáforo: o homem está iluminado a vermelho; voltam a olhar para o autocarro e para os carros parados; ninguém atravessa.
Há apenas uma figura que se move, vai a meio da passadeira. Todos os olhos se fixam nas pernas que transbordam dos sapatos e nos braços musculados como pernas fincados nas muletas; e acompanham-na pelas riscas brancas da passadeira, cada uma delas agora transformada numa meta.
E a senhora elegantemente não desvia o olhar. Pelo contrário, é tão difícil ter a oportunidade de olhar as pessoas olhos nos olhos porque nunca estão quietas. A senhora olha-me nos olhos e diz: “Leva-me uma semana a atravessar a rua”; e com um encolher de ombros acrescenta: “Têm que esperar.”
Esperamos. A senhora alcança finalmente o passeio e sorri-me. Talvez tenha sido só impressão minha, mas pareceu-me que o sorriso não era apenas de satisfação por ter conseguido completar mais um troço de viagem, mas de gozo. Poucas pessoas possuem um poder assim: fazer parar Londres.

10 agosto, 2007

George

Foram as mãos que o denunciaram. Uma jovem que é velha, uma mulher que é homem, um conquistador que é tímido, um gentleman que é mendigo, uma companhia sã que é louca – são sempre as mãos que denunciam. Quando reparei nas suas mãos, apressei a conversa, menti uma desculpa com uma parte de horas e duas de afazeres, e despedi-me. Sem aperto de mão.
Quando penso em George não o vejo a avançar com ar de quem não sabe o que está ali a fazer para a única pessoa com o mesmo ar – eu. Não vejo a barba branca nem os olhos expectantes por trás dos óculos. Nem sequer me lembro do que conversámos sentados com tempo num palco vazio enquanto à nossa volta, no centro de imprensa, as pessoas que sabiam o que estavam ali a fazer faziam muitíssimas coisas sem tempo nenhum. A dada altura, George abriu o saco (notei que o saco era um saco de desporto e não uma mala de trabalho e estava bastante coçado) e tirou o material de promoção do seu partido – neste caso, justifica-se dizer o “seu partido” porque George era o partido e o partido era George -: papéis, t-shirt, até um cd. Foi aí que reparei nas mãos. E as mãos não condiziam com o resto.
Agora quando penso em George, ele está à janela, em Londres, mais precisamente em Hampstead (tive sempre a certeza que George era do bairro mais intelectual de Londres e acertei, fui pesquisar), com vista para o Heath.
Tem as mãos no parapeito. As tais mãos que o denunciaram – um político que é sonhador. Até que alguém vem fechar a janela porque chove. Talvez uma filha que lhe limpe as mãos que ele nem as notou molhadas. George olha pela janela. Só ele sabe o que vê. Só ele sabe como será o mundo, um dia – muito diferente deste, em que os políticos têm mãos de sonhadores e os sonhadores mãos de políticos.

03 agosto, 2007

O pica

Leva uma bolsa de couro a tiracolo e um boné. Pela forma como vai sem se agarrar, percebe-se que tem pés de marinheiro e o corpo calejado de pára-arrancas. Fala com quem o quiser ouvir, mas ninguém o quer ouvir. Também quer ouvir os passageiros, mas os passageiros não querem falar. Eu ouvi.
Mesmo de rosto voltado para a janela, o homem sabia que eu o iria ouvir. Deixou o seu posto, de pé, à porta traseira do autocarro (não um de dois andares, mas uma destas novas lagartixas), e veio sentar-se a meu lado. E então falou-me sobre as janelas do autocarro, as portas do autocarro e muitos outros pormenores técnicos. Explicou-me com argumentos e contra-argumentos num monólogo aceso o defeito dos novos autocarros: a perfeição. Conhecia muito bem os antigos – as madeiras que rangem, os couros gastos, os barulhos caprichosos do motor, o tecto demasiado baixo, a porta ameaçadora, sempre aberta, sobretudo aos corajosos -: sim, os routemasters eram imperfeitos, mas cheios de personalidade. Ouvia-se, falava-se – não só entre passageiros mas com o próprio autocarro. O tradutor, ou talvez seja melhor dizer, o intermediário do diálogo, era o pica. Confessou-me que tinha saudade. Mas nunca disse que tinha trabalhado num. Não era preciso.
Quando me levantei, o homem veio atrás de mim, saiu mesmo do autocarro e acompanhou-me a uns respeitosos metros de distância pelo passeio da High Street. Não por maldade, mas por instinto, um impulso. Como um cão vadio que segue quem lhe dá comida. A minha esmola tinha sido um sorriso.
Possivelmente há muito tempo que ninguém o olhava nos olhos. Normalmente, os passageiros desviam os olhos do homem que ocupa os dias a andar de autocarro.