Quatro cavalos negros cavalgam cerimoniosamente como se soubessem que levam a morte. Foi o compasso dos cascos no asfalto que me fez abrir a janela para ver passar o cortejo fúnebre, mas a visão da carruagem florida não corresponde ao som – desliza como se fosse puxada por cavalos alados. É uma imagem anacrónica.
Um camião das obras e um autocarro desaceleram enfadados. Nos passeios, as pessoas olham desinteressadas e continuam a caminhar como se todos os dias fosse alguém a enterrar. Nos prédios, só eu venho à janela. Dentros dos mercedes negros como o poder, as pessoas permanecem impávidas.
É uma imagem anacrónica, mas a morte é anacrónica. Coroaram os quatro cavalos negros com plumas negras, mas nem isso lhes retira a gravidade.
Quatro cavalos negros cavalgam como se fosse a primeira ou a última vez que alguém morresse. Cada morte é sempre a primeira e a última.
14 agosto, 2008
14 julho, 2008
Wimbledon
A primeira vez que fui a Wimbledon, lembro-me sobretudo dos pormenores até lá chegar. Quando o metro parou na estação de Southfields (sim, não é em Wimbledon que se sai para ir para o torneio de ténis, mas duas paragens antes) não queria acreditar que o chão da estação de metro estava alcatifado – de verde. Começava ali o relvado de Wimbledon.
De um lado da plataforma chegavam pessoas que, depois de um dia de trabalho, tentavam ainda ver um dos últimos jogos antes de escurecer. Do outro lado da plataforma, outras regressavam a casa, provavelmente depois de terem passado todo o dia no torneio. Invariavelmente, as mulheres estavam bem vestidas, com roupas claras de verão, pullovers de riscas, sandálias elegantes, algumas de chapéu.
Um rapaz indiano, debaixo de um dos vasos com flores que se repetem a cada dez metros a partir daqui, apontava os horários exactos dos comboios que chegavam e partiam e eu não percebi se aquela minúcia tinha alguma coisa a ver com o facto de Wimbledon estar a decorrer ou não; se seria uma espécie de regra antiquada mas persistente, como a mudança dos juízes de linha que, comparou recentemente um cómico inglês, excede o render da guarda do palácio de Buckingham.
Ainda guardo uma recordação da primeira vez que fui a Wimbledon – um guia de “como fazer fila” e um autocolante que diz: “Eu fiz fila em Wimbledon”.
Uma vez lá dentro, a bebida oficial é Pimm's, um clássico do Verão inglês, e a comida oficial morangos com chantilly, tomados com a descontracção de quem bebe cerveja e come batatas fritas de pacote.
Dessa primeira vez, vagueando de corte em corte de entrada livre, estava fascinada por tudo, excepto o jogo de ténis propriamente dito. Distraía-me a observar os rapazes de calções e as raparigas de mini-saia a apanhar as bolas coreografados; e a apreciar a imobilidade e concentração dos juízes de linha, mais uma vez usando a comparação com Buckingham, aposto que se pode fazer caretas mesmo à frente dos juízes de linha que estes não se mexeriam.
Só da segunda vez que fui a Wimbledon comecei a interessar-me pelo jogo. Era Hewitt contra um coreano de quem não me lembro o nome. No corte 1 de Wimbledon percebi a eloquência dos ooohs, aaahs e das palmas de uma audiência de ténis.
Mas foi só à terceira que senti o que é fazer parte do público de ténis, fazer parte de Wimbledon, e até mesmo, de Londres. Não sei bem como é que isto aconteceu, mas na minha terceira vez em Wimbledon - este ano – acabei no Corte Central, e na final.
Passos acertados como soldadinhos, entraram os “caça-bolas”, depois os juízes de linha. E o árbitro sentou-se no seu lugar e deu começo ao jogo entre Roger Federer e Rafael Nadal.
Não foi um jogo mas um duelo. Os rapazes e raparigas com cerimónia passavam as bolas como amunições aos jogadores. E o público assistia como se fosse uma questão de honra, esperando que se fizesse justiça.
Houve momentos em que me senti dessíncrona da multidão, porque claramente a maioria apoiava Federer, mas nunca a multidão deixava de aplaudir quando Nadal fazia um ponto brilhante e derrotava o campeão a que Wimbledon tinha ganho afeição nos últimos cinco anos.
Tapou-se o relvado, abriram-se os guarda-chuvas, fecharam-se os guarda-chuvas, destapou-se o relvado, por duas vezes esperou-se que a chuva passasse. O duelo continuava. Caía o dia. Tínhamos chegado às duas da tarde e continuávamos ali já passava das nove da noite. Caía a luz.
Os últimos pontos foram vividos como se cada um de nós na assistência tivesse também, ali no Corte Central de Wimbledon, alguma coisa em jogo. E quando Federer mandou a última bola à rede, e Rafa se estendeu emocionado no verde de Wimbledon, toda a gente sabia que tinha sido feita justiça. E todos tínhamos ganho alguma coisa.
De um lado da plataforma chegavam pessoas que, depois de um dia de trabalho, tentavam ainda ver um dos últimos jogos antes de escurecer. Do outro lado da plataforma, outras regressavam a casa, provavelmente depois de terem passado todo o dia no torneio. Invariavelmente, as mulheres estavam bem vestidas, com roupas claras de verão, pullovers de riscas, sandálias elegantes, algumas de chapéu.
Um rapaz indiano, debaixo de um dos vasos com flores que se repetem a cada dez metros a partir daqui, apontava os horários exactos dos comboios que chegavam e partiam e eu não percebi se aquela minúcia tinha alguma coisa a ver com o facto de Wimbledon estar a decorrer ou não; se seria uma espécie de regra antiquada mas persistente, como a mudança dos juízes de linha que, comparou recentemente um cómico inglês, excede o render da guarda do palácio de Buckingham.
Ainda guardo uma recordação da primeira vez que fui a Wimbledon – um guia de “como fazer fila” e um autocolante que diz: “Eu fiz fila em Wimbledon”.
Uma vez lá dentro, a bebida oficial é Pimm's, um clássico do Verão inglês, e a comida oficial morangos com chantilly, tomados com a descontracção de quem bebe cerveja e come batatas fritas de pacote.
Dessa primeira vez, vagueando de corte em corte de entrada livre, estava fascinada por tudo, excepto o jogo de ténis propriamente dito. Distraía-me a observar os rapazes de calções e as raparigas de mini-saia a apanhar as bolas coreografados; e a apreciar a imobilidade e concentração dos juízes de linha, mais uma vez usando a comparação com Buckingham, aposto que se pode fazer caretas mesmo à frente dos juízes de linha que estes não se mexeriam.
Só da segunda vez que fui a Wimbledon comecei a interessar-me pelo jogo. Era Hewitt contra um coreano de quem não me lembro o nome. No corte 1 de Wimbledon percebi a eloquência dos ooohs, aaahs e das palmas de uma audiência de ténis.
Mas foi só à terceira que senti o que é fazer parte do público de ténis, fazer parte de Wimbledon, e até mesmo, de Londres. Não sei bem como é que isto aconteceu, mas na minha terceira vez em Wimbledon - este ano – acabei no Corte Central, e na final.
Passos acertados como soldadinhos, entraram os “caça-bolas”, depois os juízes de linha. E o árbitro sentou-se no seu lugar e deu começo ao jogo entre Roger Federer e Rafael Nadal.
Não foi um jogo mas um duelo. Os rapazes e raparigas com cerimónia passavam as bolas como amunições aos jogadores. E o público assistia como se fosse uma questão de honra, esperando que se fizesse justiça.
Houve momentos em que me senti dessíncrona da multidão, porque claramente a maioria apoiava Federer, mas nunca a multidão deixava de aplaudir quando Nadal fazia um ponto brilhante e derrotava o campeão a que Wimbledon tinha ganho afeição nos últimos cinco anos.
Tapou-se o relvado, abriram-se os guarda-chuvas, fecharam-se os guarda-chuvas, destapou-se o relvado, por duas vezes esperou-se que a chuva passasse. O duelo continuava. Caía o dia. Tínhamos chegado às duas da tarde e continuávamos ali já passava das nove da noite. Caía a luz.
Os últimos pontos foram vividos como se cada um de nós na assistência tivesse também, ali no Corte Central de Wimbledon, alguma coisa em jogo. E quando Federer mandou a última bola à rede, e Rafa se estendeu emocionado no verde de Wimbledon, toda a gente sabia que tinha sido feita justiça. E todos tínhamos ganho alguma coisa.
21 abril, 2008
Duas histórias e uma fotografia de Jan Grarup em Darfur
Uma história (Não vi a fotografia)
Um dia, repara numa criança a jogar à bola. Tem dois anos, ainda mal sabe andar, mas já dá os primeiros passes. No dia seguinte, volta a ver a mesma criança, está doente. Ao terceiro dia, olha para o menino pela última vez. E enterra-o.
Uma história (Não vi a fotografia)
Uma criança ardeu. A enfermeira diz-lhe: é mau sinal que não grite. Ele olha para a criança tão sossegada: calmamente, o menino tira pedaços de pele do próprio braço.
Uma fotografia (Não ouvi a história)
Na posição em que uma mãe com o filho adormecem juntos à hora de mamar, uma mulher e um bebé estão estendidos no chão entre outros corpos.
Um dia, repara numa criança a jogar à bola. Tem dois anos, ainda mal sabe andar, mas já dá os primeiros passes. No dia seguinte, volta a ver a mesma criança, está doente. Ao terceiro dia, olha para o menino pela última vez. E enterra-o.
Uma história (Não vi a fotografia)
Uma criança ardeu. A enfermeira diz-lhe: é mau sinal que não grite. Ele olha para a criança tão sossegada: calmamente, o menino tira pedaços de pele do próprio braço.
Uma fotografia (Não ouvi a história)
Na posição em que uma mãe com o filho adormecem juntos à hora de mamar, uma mulher e um bebé estão estendidos no chão entre outros corpos.
14 abril, 2008
Neve II
Tinha ficado à janela até a neve ser um sonho. O boneco foi a última neve a derreter, como se a forma humana lhe tivesse dado um instinto de sobrevivência. As crianças no jardim, a erguer o boneco de neve com risos; isso, podia – iria – esquecer. Iria, um dia, confundir com filmes, histórias alheias, um sonho. O que não iria esquecer era o boneco de neve a perder forma. Até ser uma pequena poça branca. Até ser nada.
12 março, 2008
Recreio
O carrossel continua a rodar se bem que as crianças há muito que regressaram à sala de aula.
Um homem, parado do outro lado da rua, continua a escutar a alegria. Sorri para dentro. Penso que observa uma única criança. Segue-a enquanto ela desce no escorrega. Corre para trás, sobe outra vez os pequenos degraus, e atira-se em nova inesperada descida.
O homem abana ligeiramente quando algum carro passa demasiado rente, demasiado depressa, mas não se mexe. Até que a campainha soa. E as crianças voltam a ocupar o movimento contínuo do recreio da escola.
Um homem, parado do outro lado da rua, continua a escutar a alegria. Sorri para dentro. Penso que observa uma única criança. Segue-a enquanto ela desce no escorrega. Corre para trás, sobe outra vez os pequenos degraus, e atira-se em nova inesperada descida.
O homem abana ligeiramente quando algum carro passa demasiado rente, demasiado depressa, mas não se mexe. Até que a campainha soa. E as crianças voltam a ocupar o movimento contínuo do recreio da escola.
06 março, 2008
Augúrio
Os pássaros começaram a empoleirar-se na árvore. Pombas, corvos, melros, pardais, democraticamente, partilhando troncos e galhos sem olhar a espécie e qualidade de canto.
A árvore curvou-se com o peso. De longe, parecia uma árvore gorda de felicidade; a uma janela, alguém pensou é primavera, sim, está quase.
Os pássaros continuavam a chegar. Submergiam das profundezas do nevoeiro – no céu de hoje vêem-se coisas que não se podem contar sem cegar.
Os pássaros encaixavam-se, sem cotoveladas nem queixas, obedientes como bailarinos de companhia. De alguma forma, é uma coreografia que nasceu com eles, foram treinados toda a vida para este dia.
Uma cegonha colocou-se no ramo mais alto como a estrela das decorações de natal e os pássaros ficaram calados e quietos, só faltavam as águias.
Até que os pássaros, concertadamente, começaram a bater as asas.
A árvore sobrevoou o parque, a estação de metro, a universidade e a rua de compras, atravessou o rio rente ao parlamento e à catedral; e depois deu a volta. Círculo após círculo, os pássaros avisavam a cidade.
Baixo a cabeça. Apenas um ponto no céu, as árvores não voam. E os pássaros há muitos muitos anos que não dizem o oráculo.
A árvore curvou-se com o peso. De longe, parecia uma árvore gorda de felicidade; a uma janela, alguém pensou é primavera, sim, está quase.
Os pássaros continuavam a chegar. Submergiam das profundezas do nevoeiro – no céu de hoje vêem-se coisas que não se podem contar sem cegar.
Os pássaros encaixavam-se, sem cotoveladas nem queixas, obedientes como bailarinos de companhia. De alguma forma, é uma coreografia que nasceu com eles, foram treinados toda a vida para este dia.
Uma cegonha colocou-se no ramo mais alto como a estrela das decorações de natal e os pássaros ficaram calados e quietos, só faltavam as águias.
Até que os pássaros, concertadamente, começaram a bater as asas.
A árvore sobrevoou o parque, a estação de metro, a universidade e a rua de compras, atravessou o rio rente ao parlamento e à catedral; e depois deu a volta. Círculo após círculo, os pássaros avisavam a cidade.
Baixo a cabeça. Apenas um ponto no céu, as árvores não voam. E os pássaros há muitos muitos anos que não dizem o oráculo.
15 fevereiro, 2008
Neve
Um mancha escura avança pela rua. Vêm com ritmo de chuva, até de tempestade de neve. Lá, nesse lugar, neva. Prova física de que existe. Lá, neva.
Enquanto caminham, eu imagino os passos abafados no branco. O branco-“Neve”, de Orhan Pamuk. Essa neve ele inventou, não existe; mas existe o lugar. De um branco tão melancólico e tão belo que paralisa. Esse lugar que vejo aqui.
Tenho medo de mover-me. Como ficou de repente diferente a rua de Stoke Newington, habitualmente com carros de bebé brilhantes e montras para fazer compras elegantes e ainda com tino e ética. Esse lugar está sempre aqui. Aqui, onde nunca a esta hora a um dia de semana a estrada estaria cortada. Aqui mesmo, “nasceu e viveu Daniel Defoe”, também Edgar Allan Poe, mas este só na época de ir à escola, não me lembro que nível da escola.
Há muito tempo já que a neve existe debaixo do alcatrão. As lojas foram abrindo, de mercearia, de fotografia para casamentos, de viagens para onde neva e no Verão, ah que glorioso Verão, não se crê possível que neve exista; e os restaurantes; principalmente os restaurantes.
A gente entra e encomenda mais uma dose de cordeiro bbq na brasa e estufados que dão saudades, a mim de Portugal. E a gente sai com o pão a escorrer o molho da carne sem ter reparado nas letras do menu, às vezes nem no nome em cima da porta, qualquer coisa que diga, de onde vem o que levamos nas mãos embrulhado em papel? E ainda ontem comi entrecosto e pickles, como acontece todas as noites em outras casas aqui do bairro. E eu não sei nada sobre essas casas. Não entendo o que dizem e nunca me passou pela cabeça tentar.
E a neve, a do Pamuk, esconde sangue, divisões. A neve não é só branca e quando cai aqui, também não.
Quando chego perto deles, a procissão está no fim, e só consigo fixar a cara do homem que me entrega o papel a explicar que os curdos reivindicam, escoltados por fluorescentes polícias britânicos, um lugar.
O homem tem um kispo e um gorro grossos, ambos para neve; bigode antiquado, e a expressão – de um silêncio como a neve de Pamuk – também.
Eles passam e rapidamente desaparecem. O chão fica limpo, reflectindo o céu liso que está hoje. Eu caminho e é o momento mais frio deste Inverno. Talvez neve. Eu gostava se nevasse.
Enquanto caminham, eu imagino os passos abafados no branco. O branco-“Neve”, de Orhan Pamuk. Essa neve ele inventou, não existe; mas existe o lugar. De um branco tão melancólico e tão belo que paralisa. Esse lugar que vejo aqui.
Tenho medo de mover-me. Como ficou de repente diferente a rua de Stoke Newington, habitualmente com carros de bebé brilhantes e montras para fazer compras elegantes e ainda com tino e ética. Esse lugar está sempre aqui. Aqui, onde nunca a esta hora a um dia de semana a estrada estaria cortada. Aqui mesmo, “nasceu e viveu Daniel Defoe”, também Edgar Allan Poe, mas este só na época de ir à escola, não me lembro que nível da escola.
Há muito tempo já que a neve existe debaixo do alcatrão. As lojas foram abrindo, de mercearia, de fotografia para casamentos, de viagens para onde neva e no Verão, ah que glorioso Verão, não se crê possível que neve exista; e os restaurantes; principalmente os restaurantes.
A gente entra e encomenda mais uma dose de cordeiro bbq na brasa e estufados que dão saudades, a mim de Portugal. E a gente sai com o pão a escorrer o molho da carne sem ter reparado nas letras do menu, às vezes nem no nome em cima da porta, qualquer coisa que diga, de onde vem o que levamos nas mãos embrulhado em papel? E ainda ontem comi entrecosto e pickles, como acontece todas as noites em outras casas aqui do bairro. E eu não sei nada sobre essas casas. Não entendo o que dizem e nunca me passou pela cabeça tentar.
E a neve, a do Pamuk, esconde sangue, divisões. A neve não é só branca e quando cai aqui, também não.
Quando chego perto deles, a procissão está no fim, e só consigo fixar a cara do homem que me entrega o papel a explicar que os curdos reivindicam, escoltados por fluorescentes polícias britânicos, um lugar.
O homem tem um kispo e um gorro grossos, ambos para neve; bigode antiquado, e a expressão – de um silêncio como a neve de Pamuk – também.
Eles passam e rapidamente desaparecem. O chão fica limpo, reflectindo o céu liso que está hoje. Eu caminho e é o momento mais frio deste Inverno. Talvez neve. Eu gostava se nevasse.
14 fevereiro, 2008
Dia de S. Valentim
Um homem alto, de barba e olhos azuis chamado Tristram segue-me. Eu não sei exactamente para onde vou e talvez por isso, ele segue-me. Eu decido, de repente, só porque alguém me pergunta no meio da rua onde fica a casa do Dickens, que vou procurá-la, e quero entrar, e ele vem comigo.
Alto, de barba e olhos azuis, no tempo de Artur sem armadura. Tristram, nome de cavaleiro.
A praça preferida dele fica ali perto mas está fechada, e eu descubro que há praças com donos, só alguns podem passear as crianças, os cães, as ideias. Eu não, nem sequer Tristram, a praça preferida dele é aquela onde nunca foi.
Descubro também que se pode namorar num cemitério. Tristram, sem nunca me tocar, tenta conquistar-me sobre uma campa, com um anjo a vigiar. No tempo de Artur conquistava-se para a morte.
Está tudo certo com Tristram, excepto qualquer coisa que eu não consigo perceber imediatamente. É o dia certo, dia de S. Valentim, uma tarde de melancolia e a melancolia pode sempre ser romântica; é um homem certo, delicado mas de feições fortes. Mas estamos em tempos desalinhados, eu e Tristram. Tristram pertence a um tempo mais à frente, muito mais à frente, quando se percebe que em tantas coisas temos que viver como se nunca tivéssemos deixado de viver no reino de Artur.
O barulho que me acordou a meio da noite continua. Tenho receio de ir espreitar à janela porque me ocorre que em vez de uma raposa esfomeada, te posso encontrar a ti, Tristram, com essa mesma certeza animal.
Uma mão que acaricia folhas e procura frutos comestíveis, um rosto que se esconde o mais possível da estrada, um corpo a corpo com outros animais nas florestas, que ainda há florestas. Tristram conhece as florestas.
“Invejo-te”, essa é a única palavra que me lembro de tudo o que falámos. Antes de mim, sabias que eu ia escrever-te; e sorriste feliz.
Mas eu não sou pessoa de escrever um homem a esta hora, que só as raposas andam lá fora, agora, Tristram. Ou sou?
Iria acordar para o S. Valentim com o dia já vivido. Foi assim:
Alto, de barba e olhos azuis, no tempo de Artur sem armadura. Tristram, nome de cavaleiro.
A praça preferida dele fica ali perto mas está fechada, e eu descubro que há praças com donos, só alguns podem passear as crianças, os cães, as ideias. Eu não, nem sequer Tristram, a praça preferida dele é aquela onde nunca foi.
Descubro também que se pode namorar num cemitério. Tristram, sem nunca me tocar, tenta conquistar-me sobre uma campa, com um anjo a vigiar. No tempo de Artur conquistava-se para a morte.
Está tudo certo com Tristram, excepto qualquer coisa que eu não consigo perceber imediatamente. É o dia certo, dia de S. Valentim, uma tarde de melancolia e a melancolia pode sempre ser romântica; é um homem certo, delicado mas de feições fortes. Mas estamos em tempos desalinhados, eu e Tristram. Tristram pertence a um tempo mais à frente, muito mais à frente, quando se percebe que em tantas coisas temos que viver como se nunca tivéssemos deixado de viver no reino de Artur.
O barulho que me acordou a meio da noite continua. Tenho receio de ir espreitar à janela porque me ocorre que em vez de uma raposa esfomeada, te posso encontrar a ti, Tristram, com essa mesma certeza animal.
Uma mão que acaricia folhas e procura frutos comestíveis, um rosto que se esconde o mais possível da estrada, um corpo a corpo com outros animais nas florestas, que ainda há florestas. Tristram conhece as florestas.
“Invejo-te”, essa é a única palavra que me lembro de tudo o que falámos. Antes de mim, sabias que eu ia escrever-te; e sorriste feliz.
Mas eu não sou pessoa de escrever um homem a esta hora, que só as raposas andam lá fora, agora, Tristram. Ou sou?
Iria acordar para o S. Valentim com o dia já vivido. Foi assim:
17 janeiro, 2008
No autocarro, a olhar para uma criança
A irmã adolescente agarra-o pelo braço com imensa doçura mas firmeza, como se nada fosse mais importante do que mudar o irmão de banco. E o irmão devolve-lhe a imensa doçura e segue-a. Depois, senta-se mais crescido do que o corpo, e olha fixamente pela janela durante toda a viagem, pensativamente adulto.
Quis tanto saber o que pensa. Pensei em aproximar-me, fazer uma pergunta casual, a seguir inquirir o nome, small talk... Hesitei o resto da viagem. Acabei por me deixar ficar sentada, silenciosa, simplesmente observando.
Não foi por medo do ridículo ou falta de coragem. Foi por perceber que o mais importante é o desejo em si de ler nos olhos (e escrever na pele). Perceber que cada pessoa é uma história a cada momento, até uma criança.
Por alguma razão misteriosa, em Londres é-me mais fácil escutar essas histórias. É bom estar de volta.
Quis tanto saber o que pensa. Pensei em aproximar-me, fazer uma pergunta casual, a seguir inquirir o nome, small talk... Hesitei o resto da viagem. Acabei por me deixar ficar sentada, silenciosa, simplesmente observando.
Não foi por medo do ridículo ou falta de coragem. Foi por perceber que o mais importante é o desejo em si de ler nos olhos (e escrever na pele). Perceber que cada pessoa é uma história a cada momento, até uma criança.
Por alguma razão misteriosa, em Londres é-me mais fácil escutar essas histórias. É bom estar de volta.
11 outubro, 2007
Os outros
Havia um post com o qual gostava de ter começado o Bay Window. Fui depois fazendo várias tentativas ao longo do tempo de vida deste blogue e nunca consegui escrever esse post.
Agora, a olhar por uma janela que não é em baía para uma paisagem tropical, penso em Londres e percebo que esse post nunca poderia ter sido escrito.
Todo o tempo estava a tentar dizer que Londres é a cidade do outro, uma cidade de encontro com os outros, talvez mesmo de encontro com a própria ideia de alteridade (o post começava até com uma citação do Ryszard Kapuscinski, mestre da “otherness”); e descubro que não posso dizer isto. Em Londres não há um encontro com “os outros”, porque em Londres, os outros somos nós.
Estou a trabalhar em encontros com outros “outros”, bem longe de Londres, noutro continente, noutro hemisfério. Tenho pena de ter que deixar de escrever no Bay Window até ao final do ano. Obrigado a todos os que foram visitando o Bay Window.
O BAY WINDOW VOLTA EM JANEIRO em www.bay-window.blogspot.com
Agora, a olhar por uma janela que não é em baía para uma paisagem tropical, penso em Londres e percebo que esse post nunca poderia ter sido escrito.
Todo o tempo estava a tentar dizer que Londres é a cidade do outro, uma cidade de encontro com os outros, talvez mesmo de encontro com a própria ideia de alteridade (o post começava até com uma citação do Ryszard Kapuscinski, mestre da “otherness”); e descubro que não posso dizer isto. Em Londres não há um encontro com “os outros”, porque em Londres, os outros somos nós.
Estou a trabalhar em encontros com outros “outros”, bem longe de Londres, noutro continente, noutro hemisfério. Tenho pena de ter que deixar de escrever no Bay Window até ao final do ano. Obrigado a todos os que foram visitando o Bay Window.
O BAY WINDOW VOLTA EM JANEIRO em www.bay-window.blogspot.com
Subscrever:
Mensagens (Atom)