15 fevereiro, 2008

Neve

Um mancha escura avança pela rua. Vêm com ritmo de chuva, até de tempestade de neve. Lá, nesse lugar, neva. Prova física de que existe. Lá, neva.
Enquanto caminham, eu imagino os passos abafados no branco. O branco-“Neve”, de Orhan Pamuk. Essa neve ele inventou, não existe; mas existe o lugar. De um branco tão melancólico e tão belo que paralisa. Esse lugar que vejo aqui.
Tenho medo de mover-me. Como ficou de repente diferente a rua de Stoke Newington, habitualmente com carros de bebé brilhantes e montras para fazer compras elegantes e ainda com tino e ética. Esse lugar está sempre aqui. Aqui, onde nunca a esta hora a um dia de semana a estrada estaria cortada. Aqui mesmo, “nasceu e viveu Daniel Defoe”, também Edgar Allan Poe, mas este só na época de ir à escola, não me lembro que nível da escola.
Há muito tempo já que a neve existe debaixo do alcatrão. As lojas foram abrindo, de mercearia, de fotografia para casamentos, de viagens para onde neva e no Verão, ah que glorioso Verão, não se crê possível que neve exista; e os restaurantes; principalmente os restaurantes.
A gente entra e encomenda mais uma dose de cordeiro bbq na brasa e estufados que dão saudades, a mim de Portugal. E a gente sai com o pão a escorrer o molho da carne sem ter reparado nas letras do menu, às vezes nem no nome em cima da porta, qualquer coisa que diga, de onde vem o que levamos nas mãos embrulhado em papel? E ainda ontem comi entrecosto e pickles, como acontece todas as noites em outras casas aqui do bairro. E eu não sei nada sobre essas casas. Não entendo o que dizem e nunca me passou pela cabeça tentar.
E a neve, a do Pamuk, esconde sangue, divisões. A neve não é só branca e quando cai aqui, também não.
Quando chego perto deles, a procissão está no fim, e só consigo fixar a cara do homem que me entrega o papel a explicar que os curdos reivindicam, escoltados por fluorescentes polícias britânicos, um lugar.
O homem tem um kispo e um gorro grossos, ambos para neve; bigode antiquado, e a expressão – de um silêncio como a neve de Pamuk – também.
Eles passam e rapidamente desaparecem. O chão fica limpo, reflectindo o céu liso que está hoje. Eu caminho e é o momento mais frio deste Inverno. Talvez neve. Eu gostava se nevasse.

1 comentário:

NoKas disse...

Não sei se vai nevar... com esta primavera antecipada as plantas andam loucas e começam já a florir!