30 março, 2007

Regresso a casa, de metro, à noite e

O metro pára, tiro os olhos do livro, e reparo que a mulher à minha frente chora.
É imperceptível aquela lágrima, mas temo que lhe possa marcar a maçã do rosto para sempre. Desce-lhe pelo rosto tão lenta que parece estar parada, aquela lágrima nunca mais irá acabar de cair.
Não me choca que a mulher chore. Quantas mulheres sozinhas, desconhecidas, anónimas, já vi chorar em Londres? Uma numa paragem de autocarro, uma dentro de um autocarro. Vi até uma mulher chorar pela rua sem parar de caminhar.
Choca-me isto: perdi-lhes a conta, perdi-lhes mesmo a memória, nem caras, nem lágrimas, nem sons, e os nomes nunca os saberei.
Choca-me que escreva isto, que o descreva. Que olhe para esta mulher que chora com esta calma; com este detalhe - de contar quanto tempo tem a lentidão de uma lágrima (podia até dizer que a mulher estava toda vestida de negro o que seria sinal inequívoco de viuvez, noutros tempos, noutros tempos, podia dizer ainda que me repugnou o cabelo demasiado comprido da mulher) -; com esta frieza.

“Senhoras e senhores, pedimos desculpa pela interrupção. A razão pela qual estamos parados é porque fomos demasiado rápidos e agora temos que esperar.” Pergunto-me se alguma vez acontecerá o mesmo a Londres: perceber que vai demasiado depressa, e ter que parar, ter que esperar.

28 março, 2007

London Fields

Estou prestes a ir à livraria mais perto de London Fields, na rua Broadway Market, para comprar o livro de Martin Amis que tem o nome deste parque no leste de Londres, London Fields. Não sei se devia.
London Fields era a segunda hipótese de título para este blogue; gosto do sítio e sobretudo, gosto do nome.
Literalmente, London Fields quer dizer campos de Londres. Agora, é um pequeno espaço verde, mas gosto de pensar que um dia se estendia a perder de vista. Que tudo isto eram campos virgens, que tudo isto estava por cultivar.
Gosto de pensar que houve um tempo em que os corvos não se comportavam como galinhas.
Tenham orgulho, portem-se como corvos, apetece dizer. Grasnem ameaçadoramente; sejam negros pelo coração, não pela penugem. Convivam com a morte, e evoquem-na: deixem augúrios como deixam pegadas. O mundo precisa de augúrios de todo o género.
Mas os corvos fogem a saltinhos de galinha assim que uma pessoa se aproxima. Bicam a terra como pedintes, estendem o bico implorante junto dos bancos. E misturam-se com as pombas, disputam com elas as migalhas.
Estes corvos não são da raça dos do Edgar Allan Poe.
Cada vez que observo os corvos gordos em London Fields, espero encontrar um que me remeta ao silêncio – sobre o qual só se possa escrever com reverência. Cada vez que vou a London Fields, espero encontrar um corvo que fale – e que seja escutado –, um sinal de mistério a contrastar na relva verde, a plantar-se na terra, nos campos de Londres.
Um dia ainda vou escrever sobre corvos em London Fields. Espero que o livro do Amis não tenha corvos.

27 março, 2007

Água mole em pedra dura..., uma não-crónica da Irlanda do Norte

Tens uma ideia?, telefonou-me ontem uma editora do jornal PÚBLICO. Era uma pergunta, mas eu tomei-a como uma afirmação: de certeza que tens uma ideia. Qual é a tua ideia?, acho que era essa a pergunta que ela queria fazer. Afinal, eu tinha ido cinco dias a Belfast escrever sobre as eleições, na primeira semana de Março, e desde aí, ainda não tinha parado de escrever sobre a Irlanda do Norte – de certeza que tens uma ideia, Susana. De certeza, tens algo para dizer no dia em que aconteceu o que mais se desejava, no dia em que Ian Paisley e Gerry Adams se sentaram à mesma mesa, no dia em que falaram um com o outro.
Já te ligo, disse-lhe em pânico.
Fui folhear os três blocos de notas que tinha preenchido em Belfast: fiz listas das citações inesquecíveis que entretanto tinha esquecido, dos pensamentos dignos de serem chamados assim, dos nomes das pessoas a quem podia voltar a telefonar para ter uma reacção.
Depois, fui fazer outra lista para confrontar com as primeiras – das histórias que já tinha escrito para o PÚBLICO sobre a Irlanda do Norte: o que é que eu teria deixado de fora, o que é que ainda podia aproveitar?
Listas sabidinhas na cabeça, não só continuava sem saber o que escrever, como percebi que o conteúdo daquelas listas ia todo dar ao mesmo.
Enquanto revia trabalho por medo de me repetir, concluia que, apesar dos títulos e temas diferentes, estive sempre a repetir-me, a dizer a mesma coisa: as pessoas da Irlanda do Norte querem andar com as suas vidas para a frente.
E porque é que agora – que ontem se confirmou que o governo de coligação Sinn Féin/DUP arranca, embora com arranque adiado para início de Maio – haveria de dizer diferente?
Foi essa a mensagem da votação nas eleições, é esse o significado do encontro histórico de ontem, e é isso que os políticos irão fazer em governo autónomo – ajudar as pessoas a andar com as vidas para a frente.
Água mole em pedra dura... – podia ser este o ditado da Irlanda do Norte. Tudo tem que ser repetido, repetido até entrar. Portanto, só posso continuar a escrever o mesmo: as pessoas da Irlanda do Norte querem andar com as vidas para a frente.
Só há uma coisa que posso acrescentar: as pessoas da Irlanda do Norte merecem. Já tinha dito que os irlandeses são uma simpatia? Se calhar não disse, em tantas reportagens.
Cada vez que me perguntam como foi a Irlanda do Norte, não respondo com o trabalho correu bem ou a cidade é bonita. A primeira coisa que digo é: os irlandeses são uma simpatia.
Generosidade quer dizer dar mais do que aquilo que se pede. Os irlandeses do Norte deram-me muito mais do que as minhas perguntas pediam. Foram muito mais generosos comigo do que aquilo que eu fui com eles: nem sempre abrindo as minhas perguntas às respostas deles.
Quando fui para a Irlanda do Norte, ia cheia de ideias. Achava que sabia o que era preciso dizer, achava que sabia do conflito, do pós-conflito, que sabia tudo. As ideias deixei-as todas lá. Voltei vazia de ideias, sem saber coisa nenhuma.
Peço desculpa, mas não tenho nenhuma ideia. Seria preciso voltar a Belfast. A partir do dia de ontem, é preciso voltar, e começar o trabalho de novo, e então sim, talvez tivesse uma ideia, uma que fizesse justiça às pessoas da Irlanda do Norte.

25 março, 2007

Janela nova

A minha janela preferida é a janela da minha infância.
É uma janela em pé – para se estar à janela de pé: para ver o mundo ao alto.
É uma porta – abre-se e atravessa-se: vai dar a algum lado.
É um espelho – de corpo inteiro: não mente, nada esconde.
É um filtro – só vejo o que quero e nunca esqueço que a vista do lado de dentro é tão importante como a do lado de fora.
Uso o presente, porque não seria sincera se usasse o passado. Há coisas que não passam.
Durante muito tempo, quando acordava de noite sem reconhecer onde estava, era porque pensava estar nesse quarto.
Durante muito tempo, quando acordava de manhã, esperava ver na parede essa janela.
Até vir para Londres, nunca tinha encontrado uma janela à altura de substituir a janela da minha infância.