11 outubro, 2007

Os outros

Havia um post com o qual gostava de ter começado o Bay Window. Fui depois fazendo várias tentativas ao longo do tempo de vida deste blogue e nunca consegui escrever esse post.
Agora, a olhar por uma janela que não é em baía para uma paisagem tropical, penso em Londres e percebo que esse post nunca poderia ter sido escrito.
Todo o tempo estava a tentar dizer que Londres é a cidade do outro, uma cidade de encontro com os outros, talvez mesmo de encontro com a própria ideia de alteridade (o post começava até com uma citação do Ryszard Kapuscinski, mestre da “otherness”); e descubro que não posso dizer isto. Em Londres não há um encontro com “os outros”, porque em Londres, os outros somos nós.

Estou a trabalhar em encontros com outros “outros”, bem longe de Londres, noutro continente, noutro hemisfério. Tenho pena de ter que deixar de escrever no Bay Window até ao final do ano. Obrigado a todos os que foram visitando o Bay Window.

O BAY WINDOW VOLTA EM JANEIRO em www.bay-window.blogspot.com

01 outubro, 2007

British Library - O leitor

Tem pedaços de corda por atacadores, um blazer de Verão por impermeável de Inverno, e um saco com rodinhas por casa.
Tem mais ou menos 40 anos.
Tem mãos de escritor que são aquelas que as pessoas costumam chamar erradamente de mãos de pianista. A partir de certa idade, nas mãos não se lê o futuro, mas aquilo que poderia ter sido o futuro.

28 setembro, 2007

Actividade ilícita

“Faltam 15 minutos para encerrar.” P. fecha o computador e dirige-se à casa de banho da biblioteca. Retoque de maquilhagem, mudança de sapatos, blazer, P. sai da casa de banho uma executiva. Chegará a casa vestida como quem veio do escritório onde é suposto trabalhar como consultora. Alguns jovens têm que esconder dos pais que fumam, bebem, tomam drogas, dormem com alguém do sexo oposto, dormem com alguém do mesmo sexo... P. esconde que escreve.

25 setembro, 2007

BL

Sabem aquele desejo de dar um grito num sítio onde não se pode sequer falar alto? Não fui eu, não tive coragem, mas um casal acabou de descer as escadas da British Library aos berros. Quando chegaram à saída iam tão satisfeitos que o segurança não conseguiu fazer mais nada a não ser rir. Por momentos, pensei que também o segurança ia desatar aos berros. Ainda tive esperança que se pegasse.

21 setembro, 2007

Special People

Talvez seja tempo de começar a ler jornais desportivos e tablóides, mas até aqui ainda não ganhei o hábito, e se calhar por isso, o conceito de um José Mourinho odiado pelos ingleses – como no retrato do P2 de hoje - é-me absolutamente estranho.
Não creio que exibir sucessos (ou até vangloriar-se) seja “pena capital” na jurisdição britânica, pelo contrário. A característica que mais me tem custado a entender na mentalidade anglo-saxónica é a falta de humildade, porque isto é extraordináriamente estrangeiro para um português.
Um português em Londres é obrigado a viver com o Mourinho – a associação Português=Mourinho ultrapassa todas as outras, do vinho do Porto ao Algarve. E é obrigado a ver-se no Mourinho.
E o único pedaço verdadeiramente feliz do espelho é a arrogância. Como se o Mourinho representasse a nossa possibilidade de, noutro país, viver esquecidos do nosso destino de humildade.

14 setembro, 2007

Almoço no café

Às 12h vêm as mulheres com filhos – nas mãos, no colo, na barriga – e vão-se.
Às 13h vêm as mulheres sem filhos – estão ainda mais carregadas – e vão-se.
Às 14h vêm os homens – um telemóvel, um jornal, um livro, qualquer coisa para não comer sozinho - e vão-se.
Às 15h até as meninas ao balcão estão ausentes.

12 setembro, 2007

149 – a leitora

Nunca tinha visto ninguém de olhos bem abertos com a expressão de quem os tem fechados. Tenho a certeza que lê, simplesmente não aquilo que está escrito.

29 agosto, 2007

149 – o ginasta

Cospe nas mãos – primeiro uma, depois outra – e esfrega-as uma nas outra. Olha em redor e fecha os olhos. Levanta os braços e volta a baixá-los. Junta os pés. Respira fundo. De expressão concentrada, ainda de olhos fechados, levanta os braços lentamente até que as mão sentem as pegas. Agarra-se e eleva-se. Por instantes, fica absolutamente imóvel no ar, antes das pernas começarem a curva para si próprio. Com o corpo fechado como um bicho de conta, roda até prefazer 360 perfeitos. Chega ao chão suavemente – os pés ainda juntos – pousando sem hesitações. Sobe a cabeça, o tronco, até as costas ficarem direitas. Respira fundo. Levanta os braços e volta a baixá-los e abre os olhos.
No autocarro, ninguém bate palmas.

22 agosto, 2007

149

A crianca é igual à mãe. Vai sentada tal e qual: costas curvadas por uma carga invisível; olhar em frente mas vago para que não se direccione a alguém específico; as mãos espremidas uma na outra sobre o colo.
A crianca está prestes a chorar, e também nisso é igual a mãe: contém um choro adulto.

15 agosto, 2007

Atravessar a rua

O semáforo fica verde. O motorista do autocarro suspira por si e pelos seus passageiros, e não se mexe. Os condutores dos automóveis mexem ligeiramente o pé direito consolados no ruído movimentado do acelerador. Os peões olham para o autocarro e para os carros parados; olham para o semáforo: o homem está iluminado a vermelho; voltam a olhar para o autocarro e para os carros parados; ninguém atravessa.
Há apenas uma figura que se move, vai a meio da passadeira. Todos os olhos se fixam nas pernas que transbordam dos sapatos e nos braços musculados como pernas fincados nas muletas; e acompanham-na pelas riscas brancas da passadeira, cada uma delas agora transformada numa meta.
E a senhora elegantemente não desvia o olhar. Pelo contrário, é tão difícil ter a oportunidade de olhar as pessoas olhos nos olhos porque nunca estão quietas. A senhora olha-me nos olhos e diz: “Leva-me uma semana a atravessar a rua”; e com um encolher de ombros acrescenta: “Têm que esperar.”
Esperamos. A senhora alcança finalmente o passeio e sorri-me. Talvez tenha sido só impressão minha, mas pareceu-me que o sorriso não era apenas de satisfação por ter conseguido completar mais um troço de viagem, mas de gozo. Poucas pessoas possuem um poder assim: fazer parar Londres.

10 agosto, 2007

George

Foram as mãos que o denunciaram. Uma jovem que é velha, uma mulher que é homem, um conquistador que é tímido, um gentleman que é mendigo, uma companhia sã que é louca – são sempre as mãos que denunciam. Quando reparei nas suas mãos, apressei a conversa, menti uma desculpa com uma parte de horas e duas de afazeres, e despedi-me. Sem aperto de mão.
Quando penso em George não o vejo a avançar com ar de quem não sabe o que está ali a fazer para a única pessoa com o mesmo ar – eu. Não vejo a barba branca nem os olhos expectantes por trás dos óculos. Nem sequer me lembro do que conversámos sentados com tempo num palco vazio enquanto à nossa volta, no centro de imprensa, as pessoas que sabiam o que estavam ali a fazer faziam muitíssimas coisas sem tempo nenhum. A dada altura, George abriu o saco (notei que o saco era um saco de desporto e não uma mala de trabalho e estava bastante coçado) e tirou o material de promoção do seu partido – neste caso, justifica-se dizer o “seu partido” porque George era o partido e o partido era George -: papéis, t-shirt, até um cd. Foi aí que reparei nas mãos. E as mãos não condiziam com o resto.
Agora quando penso em George, ele está à janela, em Londres, mais precisamente em Hampstead (tive sempre a certeza que George era do bairro mais intelectual de Londres e acertei, fui pesquisar), com vista para o Heath.
Tem as mãos no parapeito. As tais mãos que o denunciaram – um político que é sonhador. Até que alguém vem fechar a janela porque chove. Talvez uma filha que lhe limpe as mãos que ele nem as notou molhadas. George olha pela janela. Só ele sabe o que vê. Só ele sabe como será o mundo, um dia – muito diferente deste, em que os políticos têm mãos de sonhadores e os sonhadores mãos de políticos.

03 agosto, 2007

O pica

Leva uma bolsa de couro a tiracolo e um boné. Pela forma como vai sem se agarrar, percebe-se que tem pés de marinheiro e o corpo calejado de pára-arrancas. Fala com quem o quiser ouvir, mas ninguém o quer ouvir. Também quer ouvir os passageiros, mas os passageiros não querem falar. Eu ouvi.
Mesmo de rosto voltado para a janela, o homem sabia que eu o iria ouvir. Deixou o seu posto, de pé, à porta traseira do autocarro (não um de dois andares, mas uma destas novas lagartixas), e veio sentar-se a meu lado. E então falou-me sobre as janelas do autocarro, as portas do autocarro e muitos outros pormenores técnicos. Explicou-me com argumentos e contra-argumentos num monólogo aceso o defeito dos novos autocarros: a perfeição. Conhecia muito bem os antigos – as madeiras que rangem, os couros gastos, os barulhos caprichosos do motor, o tecto demasiado baixo, a porta ameaçadora, sempre aberta, sobretudo aos corajosos -: sim, os routemasters eram imperfeitos, mas cheios de personalidade. Ouvia-se, falava-se – não só entre passageiros mas com o próprio autocarro. O tradutor, ou talvez seja melhor dizer, o intermediário do diálogo, era o pica. Confessou-me que tinha saudade. Mas nunca disse que tinha trabalhado num. Não era preciso.
Quando me levantei, o homem veio atrás de mim, saiu mesmo do autocarro e acompanhou-me a uns respeitosos metros de distância pelo passeio da High Street. Não por maldade, mas por instinto, um impulso. Como um cão vadio que segue quem lhe dá comida. A minha esmola tinha sido um sorriso.
Possivelmente há muito tempo que ninguém o olhava nos olhos. Normalmente, os passageiros desviam os olhos do homem que ocupa os dias a andar de autocarro.

26 julho, 2007

horizonte

Em Londres nunca se vê o horizonte. Foi por isso que quando me deparei pela primeira vez com os homens de pedra, feitos (à sua imagem) por Antony Gormley, no topo dos edifícios, fiquei cheia de inveja.
Mais tarde voltei de propósito ao South Bank e a Waterloo, e andei de pescoço esticado a inspeccionar cada terraço, a examinar cada figura - mãos alinhadas com o corpo, a cabeça numa perpendicular perfeita, as costas a aplacar as nuvens -, a reconstituir cada olhar de pedra. Desta vez, fiquei com pena dos homens de pedra. Em Londres, não faz falta ver o horizonte.

18 julho, 2007

O gato

O gato é quase tão grande como a raposa. O gato e a raposa nunca visitam o jardim ao mesmo tempo.

11 julho, 2007

Peter O'Toole

Vi um homem extraordinariamente parecido ao Peter O'Toole. A mesma magreza, a mesma postura, o mesmo tom, as mesmas maçãs do rosto, os mesmos olhos azuis, mas cinzentos.
Saí atrás dele na plataforma, fui atrás dele nas escadas rolantes, segui-o por uma das seis saídas. Calçava sapatos de vela, vestia roupa que também seria adequada para um veleiro, e levava na mão uma mala de computador preta simples. Peter O'Toole podia vestir-se assim. Peter O'Toole até podia andar de metro.
Mas não era Peter O'Toole, e eu sabia. Por isso o segui: por não ser Peter O'Toole mas um homem normal. Perdi-o no topo das escadas, contra o céu.

05 julho, 2007

Primeira bomba em Londres

Uma pessoa nunca se perde sem razão, e eu andava perdida bem perto de casa. Até que dei com o Nevill Arms e uma placa azul - “primeira bomba em Londres”, li. E durante algum tempo, parada em frente ao pub fechado, esperei ver um zeppelin aparecer no céu.
Veio ameaçador – também belo até ser vergonhoso –, o próprio céu a mover-se.
92 anos, um mês e alguns dias depois, a imagem veio sem som. Tão perto da bomba que não se ouve rebentar.

28 junho, 2007

Boas vindas

Ela não faz nada. Eu também não. Olhamo-nos através do vidro, cada uma medindo o medo da outra. Ela dá uns passos atrás. Eu também. E desviamos o olhar, cada uma decidindo aceitar a outra. Ela finge ignorar-me enquanto tomo o pequeno-almoço. Eu finjo não observá-la a explorar o meu jardim.
Este é o primeiro hábito que ganho no regresso a Londres - e na casa nova –: ao acordar, abeirar-me do jardim e esperar pela raposa.

12 junho, 2007

de viagem

Peço desculpa pela falta de actualização das últimas semanas, mas tenho estado fora do Reino Unido e com pouco acesso à internet. O bay window voltará ao normal daqui a duas semanas, com o meu regresso a Londres.

04 junho, 2007

O pássaro cego

Para descobrir isto houve quem tenha feito estudos, descrições, experiências, manipulações, até provarem – na rádio, na BBC –: este pássaro que está a ouvir, explicava o locutor, é um homem, e este homem que ouve cantar, continuava, é, na realidade, um pássaro.
Eu sabia o mesmo (e com muito menos trabalho). Só tive que descer onde descem por vezes algumas pombas, mas raras. É no único lugar sem pássaros que o homem pode tomar o lugar dos pássaros. Tenho a impressão que se lhe perguntassem o que és, o cego do metro responderia pássaro. Só assim, esquecendo que é homem, poderia continuar com o seu assobio, apagado intermitentemente pelos comboios quando chegam, quando partem.

15 maio, 2007

Pequeno-almoço

Acho que vi isto num filme. Devo ter visto num filme. Preferia ter visto num filme. Já não sei se vi num filme ou se aconteceu mesmo.
Tomava o pequeno-almoço em Covent Garden e na mesa à minha frente sentou-se um homem com a cara fechada – esse rosto caricaturalmente sério com que os actores de cinema se mascaram para serem alguns homens: homens que fazem parte de grupos criminosos, homens criminosos porque fazem parte de um grupo, homens que treinaram a memória para esquecer; homens que se trancaram, e nessa altura, desaprenderam a sorrir. Nem para a empregada bonita, de um bonito francês.
O homem mete a mão ao bolso interior do casaco de cabedal. Fecho os olhos. Quando os abro, o homem continua lá. Toda a gente continua no café francês. A empregada bonita passa. Outros clientes entram, sentam-se. Outros saem. Ninguém parece reparar no homem. Nem agora que deita ameaçadoramente as cartas sobre a mesa. As cartas escorrem-lhe vermelhas da mão.
Olha em frente, calha ser a direcção da porta, mas é difícil dizer se espera ver entrar alguém em particular. O tempo passa por ele – nas mãos, não nos olhos – e à sua frente continua aquele espaço vazio, até à barreira das costas seguintes, do homem seguinte, ali a metros mas que nada tem a ver com o homem atrás de si.
Não olha para as mãos, as mãos trabalham melhor quando não são vigiadas. O homem joga bem, joga de muito hábito. Joga melhor contra si próprio, mais habitual do que isso não há.
Roda as cartas com a rapidez de uma volta de canhão.
Parte. Dá. O homem tira uma carta. Volta-a ao contrário.
Não sei se morreu ali naquele momento – não vi que carta lhe saiu, e mesmo que visse, não adiantaria, só ele pode interpretar a própria morte. E quanto ao rosto, nem alívio nem medo.
O homem volta a pôr a carta no baralho e afasta-o. Chegou o croissant e o cappuccino.E o homem toma o seu pequeno-almoço.

11 maio, 2007

Chuva I

“Tu pareces infeliz e eu estou infeliz”, disse L. finalmente. Desde que nos tínhamos sentado na esplanada, chovia. Quem passasse pelo passeio em passo de chuva, pensaria que éramos impermeáveis. Nada mais errado: estávamos até encharcados por dentro.
O problema não era sequer sentir a frieza da chuva na pele do rosto e das mãos. A nossa infelicidade era toda interior, uma desilusão. Uma portuguesa e um sul-africano, tínhamos que admitir que tínhamos sido enganados. Todo o mês passado tinha sido uma mentira: afinal, ainda não é Verão.

30 abril, 2007

Whitechapel

A todo o comprimento, barracas de fruta – frutas grandes que deixam a Europa invejosa - e vegetais tão inebriantes quanto as frutas (uma libra o cesto); bancas de telemóveis e gadgets vários; vendas de tops a três libras três, e ainda, roupa interior ousada.
A toda a largura, mulheres carregam sacos, filhos, por vezes, marido, isto felinamente, que o véu não cobre os sentidos; raparigas chinesas em idade escolar interceptam quem passa com dvds de sotaque irreconhecível; mulheres bem vestidas esquecem-se de ser mulheres de saltos altos para não perder o metro, o autocarro.
E no meio das mulheres atarefadas, no meio dos homens mais calmos mas a ocupar mais espaço, no meio dos pregões, por entre as línguas, por entre os segundos e minutos e todos os ponteiros a circular, por entre os corpos de velocidade de impacto, de cuidado-não-páres, debaixo do helicóptero ensurdecedor que aterra a aflição no topo do hospital-alguém-morre-ali-ao-lado, no meio da rua sem espaço vazio – está um homem sentado. Sentado. Pendem-lhe três maços de Dunhill de uma mão, o resto está dentro do saco. Não levanta a voz, só os olhos, supremo e único justificável esforço. Tem pele cor-de-deserto, cor-de-clima-tropical, cor de todos os extremos; esse tom que se adquire como um estatuto, que se ganha como a sabedoria, primeiros com os anos, e depois, para além dos anos a passar, estes anos-fim à sombra inglesa.
Por entre 7/7, 12/12, no meio da rua sem pausa, tem pose de quem não imigrou mas se trasladou: de um qualquer lugar feito das pausas - para fumar, para conversar, até mesmo, para estar sentado; o lugar onde morreu, ou morre, ou morrerá, igual para o caso.
Se é possível saber que forma tem a pressa, é esta: em redor do homem sentado num banco de tamanho infantil, encostado a um poste para poder estar todo o dia, com a mão cheia de maços de cigarros mais baratos que ninguém compra, no meio de Whitechapel.

25 abril, 2007

Procurar casa

O agente imobiliário ainda não tinha chegado. Sentei-me num banco. Nesse instante, as crianças desataram a correr como pombos espantados, e eu fiquei sozinha com o rio. Vi o ângulo perfeito com que os aviões levantam voo, na outra margem. Vi o barco que chegava, provavelmente o primeiro da hora de ponta – veio dos arranha-céus a Oeste; e volta para buscar mais pessoas aos arranha-céus. Vi que para Este ainda não há arranha-céus, mas as gruas já lá estão. Vi um barco digno do rio, um desses que desliza tão pesado tão impossível de navegar que só pode ser uma aparição. Foi nesse momento que as crianças voltaram, correndo para o barco, pousando no muro, a apontar.
Quando o agente imobiliário chegou, eu já tinha vivido na casa que ainda não me tinha mostrado. Tinha aberto as janelas, porque até pelas traseiras entrará o ar puro das águas. Tinha, todos os dias, caminhado pela abertura da paisagem até este banco. Já conhecia de cor o horário dos barcos-comboios (nunca entendi o passatempo de ver passar comboios, mas ver passar os barcos, ah, poderia tornar-me numa fanática). Já sabia que aos dias de semana o pedaço de jardim é vazio como o mar; e que só se preenche quando acaba a escola. Já tinha escrito muitos textos, pensado tantos outros, sentada no banco, entre a linha do horizonte marcada-fim e uma praça onde as crianças se metem dentro de estátuas ocas até ao dia em que forem grandes, grandes demais para caberem inteiras dentro das brincadeiras.
Fui-me embora de comboio e não de barco; deixando para trás uma casa, e o agente imobiliário, de telefone e chave na mão, um pouco desconcertado.

23 abril, 2007

Amén

O autocarro parou num semáforo, e então li: “Aceite a oferta grátis de Deus hoje... Vida Eterna!”
Já que Deus não pede dinheiro, alguém pede por ele. Em Londres tudo se paga, e nem a Vida Eterna é excepção.
Mais tarde, era fim de dia já de noite, caminhava numa rua não muito longe da primeira igreja – em Hackney, onde existe uma forte comunidade de origem africana – e passei por outra igreja. Tinha a porta aberta, provavelmente para que as pessoas não abafassem com os gritos.
De costas, a multidão situava-se na América dos anos 50, com os seus chapéus paradoxais: severos e garridos como só os africanos são capazes. De frente, não vi, mas acredito que os rostos fossem deste tempo, deste sítio, deslocados dos seus chapéus amarelo, vermelho, verde.

22 abril, 2007

Domingo.

Acordei com o silêncio dos sinos, pois é hoje o único dia em que o silêncio nos acorda.
Acordei aqui, podia ter acordado aí, para o mesmo dia quieto.
Ao Domingo, não existe espaço.
Domingo é só tempo. Passa.

16 abril, 2007

pésnaterracabeçanoar

No outro dia fizeram-me o reparo de que devia pôr os pés na terra (quando escrevo, se bem que se podia aplicar a quase tudo, segundo a minha mãe), e eu fiquei a pensar nessa expressão. Nessa, e na outra: cabeça no ar.
Inevitavelmente, quando andamos com os pés na terra, andamos com a cabeça no ar - esse é o estado natural de estar no mundo.
A verdade é que, para escrever - gosto de esticar as pernas no sofá ou cruzá-las junto ao corpo na cadeira - tiro muitas vezes os pés do chão.

15 abril, 2007

Mexerico global

Primeiro, os tablóides. Compram e logo vendem medos, desgraças, ódios, celebridades, ou idealmente, celebridades com medos a quem acontece desgraças que suscitam ódios.
Segundo, os jornais de qualidade. Usam e logo vendem as mesmas histórias. Legitimam e dão seriedade aos medos, desgraças, ódios, celebridades, com aquela infantilidade das crianças que dizem asneiras e justificam-se: não fui eu que disse, foi o não sei quantos... Porque é preciso falar daquilo que se está a falar. E se os media de qualidade britânicos falam, então merece ser falado, e os jornais portugueses e de outras nacionalidades, falam também.
Terceiro, os leitores. É como as telenovelas e o Big Brother: toda a gente critica, toda a gente vê. E finalmente, toda a gente compra. E isto, leva-nos ao início.

Frase solta

Londres é um campo de deslocados de 1500 km2

13 abril, 2007

Expats

Foi uma palavra que ele usou: expatriados. Eu, tu, ele próprio. Expatriados sentados à mesa expatriada de um restaurante quase turco. Ele usou a palavra depois de termos concluído que nós, vós, eles, não éramos típicos – nem de portugueses nem de bósnios nem de húngaros. E foi então que disse:
Nós - os expatriados -, estamos aqui porque na nossa terra já éramos expatriados.

11 abril, 2007

Em branco

Olho para a janela – onde mais ter a esperança de ver a inspiração a cair do céu? O meu caderno não vira a página, branco desafiador.
Há estatísticas sobre os anos que gastamos numa vida a dormir. Nunca ninguém se lembrou de medir o tempo passado assim: em branco.

10 abril, 2007

Café-escritório

Já é hora de almoço. A esta hora, em Lisboa, os cafés põe as mesas e já ninguém tem lugar para sentar numa sala vazia.
É a mesma hora em Londres: 12h00.
Ninguém come. As largas chávenas de café estão dispostas de forma casual, como se fizessem parte do conjunto de objectos pessoais que se espalham numa mesa: um portátil, jornais (pessoais apenas enquanto os folheamos; pertencem a todos), um bloco de notas, um maço de folhas impressas.
Cada mesa é um escritório circular, uma redoma de trabalho; e um refúgio público, porque também a solidão precisa de companhia.
Neste café, escrevem-se guiões, desenham-se storyboards, sublinham-se livros, fazem-se listas, escrevem-se cadernos, reescrevem-se textos.
Não se trocam palavras, nem olhares. Não é preciso. A solidariedade está instalada. Reconhecemo-nos uns nos outros: freelancers, nos cafés livres – tão livres que estamos prisioneiros da liberdade.

07 abril, 2007

Para turismo de Páscoa em Londres:

“Estas 2 casas foram a
Embaixada de Portugal
1724-1747
O Marquês de Pombal
Estadista Português
Embaixador
1739-1744
viveu aqui”

É em Golden Square, números 23 e 24 (metro: Piccadilly Circus).

02 abril, 2007

Situação com M.

- Desculpa, mas tenho mesmo que ver o que se passa. - M. olha para a chamada perdida no telemóvel, apreensiva; oito da noite, repara (e também eu reparo, o café onde estamos subitamente esvaziou) - Não é normal o meu chefe ligar-me a esta hora.
Uma ordem para voltar ao escritório, uma reprimenda, uma má notícia, uma desgraça, uma catástrofe, há fogo – é o que M. espera desta chamada. Em Portugal, sim, telefonavam-lhe muitas vezes fora de horas.
O chefe atendeu do outro lado:
- Yes... Yes... Thank you. - M. sorri - Thank you!
M. desliga, e diz, perplexa:
- Era para me dar os parabéns pelo trabalho dos últimos dias.
M. chegou a Londres há dois meses e diz que voltará para Portugal. Quase todos os portugueses que conheço aqui dizem que vão voltar para Portugal. Vão ficando...

01 abril, 2007

Contribuiçao para um manifesto de 1 de Abril

Proponho que a 1 de Abril, em vez de se contar mentiras, se conte verdades que parecem mentira. Verdades-boquiabertas, verdades-quase-nada, verdades-de-ficar-pensando-não-é-assim-tão-mau.
As verdades-que-parecem-mentira do meu 1 de Abril em Londres:
- meio do dia, e ao sol está-se bem de manga curta
- não há dúvida: o sol faz as pessoas felizes
- não há dúvida: a felicidade faz as pessoas bondosas
- o condutor do autocarro piscou-me o olho, sorriu, e deixou-me ir sem pagar bilhete (qualquer pessoa que viva em Londres, vai ficar convencida que é uma mentira de 1 de Abril, garanto que não, é uma verdade que parece mentira)
- daqui a pouco chegam visitas de Portugal, e será como se tivesse eu viajado e, hoje, chegado a casa

30 março, 2007

Regresso a casa, de metro, à noite e

O metro pára, tiro os olhos do livro, e reparo que a mulher à minha frente chora.
É imperceptível aquela lágrima, mas temo que lhe possa marcar a maçã do rosto para sempre. Desce-lhe pelo rosto tão lenta que parece estar parada, aquela lágrima nunca mais irá acabar de cair.
Não me choca que a mulher chore. Quantas mulheres sozinhas, desconhecidas, anónimas, já vi chorar em Londres? Uma numa paragem de autocarro, uma dentro de um autocarro. Vi até uma mulher chorar pela rua sem parar de caminhar.
Choca-me isto: perdi-lhes a conta, perdi-lhes mesmo a memória, nem caras, nem lágrimas, nem sons, e os nomes nunca os saberei.
Choca-me que escreva isto, que o descreva. Que olhe para esta mulher que chora com esta calma; com este detalhe - de contar quanto tempo tem a lentidão de uma lágrima (podia até dizer que a mulher estava toda vestida de negro o que seria sinal inequívoco de viuvez, noutros tempos, noutros tempos, podia dizer ainda que me repugnou o cabelo demasiado comprido da mulher) -; com esta frieza.

“Senhoras e senhores, pedimos desculpa pela interrupção. A razão pela qual estamos parados é porque fomos demasiado rápidos e agora temos que esperar.” Pergunto-me se alguma vez acontecerá o mesmo a Londres: perceber que vai demasiado depressa, e ter que parar, ter que esperar.

28 março, 2007

London Fields

Estou prestes a ir à livraria mais perto de London Fields, na rua Broadway Market, para comprar o livro de Martin Amis que tem o nome deste parque no leste de Londres, London Fields. Não sei se devia.
London Fields era a segunda hipótese de título para este blogue; gosto do sítio e sobretudo, gosto do nome.
Literalmente, London Fields quer dizer campos de Londres. Agora, é um pequeno espaço verde, mas gosto de pensar que um dia se estendia a perder de vista. Que tudo isto eram campos virgens, que tudo isto estava por cultivar.
Gosto de pensar que houve um tempo em que os corvos não se comportavam como galinhas.
Tenham orgulho, portem-se como corvos, apetece dizer. Grasnem ameaçadoramente; sejam negros pelo coração, não pela penugem. Convivam com a morte, e evoquem-na: deixem augúrios como deixam pegadas. O mundo precisa de augúrios de todo o género.
Mas os corvos fogem a saltinhos de galinha assim que uma pessoa se aproxima. Bicam a terra como pedintes, estendem o bico implorante junto dos bancos. E misturam-se com as pombas, disputam com elas as migalhas.
Estes corvos não são da raça dos do Edgar Allan Poe.
Cada vez que observo os corvos gordos em London Fields, espero encontrar um que me remeta ao silêncio – sobre o qual só se possa escrever com reverência. Cada vez que vou a London Fields, espero encontrar um corvo que fale – e que seja escutado –, um sinal de mistério a contrastar na relva verde, a plantar-se na terra, nos campos de Londres.
Um dia ainda vou escrever sobre corvos em London Fields. Espero que o livro do Amis não tenha corvos.

27 março, 2007

Água mole em pedra dura..., uma não-crónica da Irlanda do Norte

Tens uma ideia?, telefonou-me ontem uma editora do jornal PÚBLICO. Era uma pergunta, mas eu tomei-a como uma afirmação: de certeza que tens uma ideia. Qual é a tua ideia?, acho que era essa a pergunta que ela queria fazer. Afinal, eu tinha ido cinco dias a Belfast escrever sobre as eleições, na primeira semana de Março, e desde aí, ainda não tinha parado de escrever sobre a Irlanda do Norte – de certeza que tens uma ideia, Susana. De certeza, tens algo para dizer no dia em que aconteceu o que mais se desejava, no dia em que Ian Paisley e Gerry Adams se sentaram à mesma mesa, no dia em que falaram um com o outro.
Já te ligo, disse-lhe em pânico.
Fui folhear os três blocos de notas que tinha preenchido em Belfast: fiz listas das citações inesquecíveis que entretanto tinha esquecido, dos pensamentos dignos de serem chamados assim, dos nomes das pessoas a quem podia voltar a telefonar para ter uma reacção.
Depois, fui fazer outra lista para confrontar com as primeiras – das histórias que já tinha escrito para o PÚBLICO sobre a Irlanda do Norte: o que é que eu teria deixado de fora, o que é que ainda podia aproveitar?
Listas sabidinhas na cabeça, não só continuava sem saber o que escrever, como percebi que o conteúdo daquelas listas ia todo dar ao mesmo.
Enquanto revia trabalho por medo de me repetir, concluia que, apesar dos títulos e temas diferentes, estive sempre a repetir-me, a dizer a mesma coisa: as pessoas da Irlanda do Norte querem andar com as suas vidas para a frente.
E porque é que agora – que ontem se confirmou que o governo de coligação Sinn Féin/DUP arranca, embora com arranque adiado para início de Maio – haveria de dizer diferente?
Foi essa a mensagem da votação nas eleições, é esse o significado do encontro histórico de ontem, e é isso que os políticos irão fazer em governo autónomo – ajudar as pessoas a andar com as vidas para a frente.
Água mole em pedra dura... – podia ser este o ditado da Irlanda do Norte. Tudo tem que ser repetido, repetido até entrar. Portanto, só posso continuar a escrever o mesmo: as pessoas da Irlanda do Norte querem andar com as vidas para a frente.
Só há uma coisa que posso acrescentar: as pessoas da Irlanda do Norte merecem. Já tinha dito que os irlandeses são uma simpatia? Se calhar não disse, em tantas reportagens.
Cada vez que me perguntam como foi a Irlanda do Norte, não respondo com o trabalho correu bem ou a cidade é bonita. A primeira coisa que digo é: os irlandeses são uma simpatia.
Generosidade quer dizer dar mais do que aquilo que se pede. Os irlandeses do Norte deram-me muito mais do que as minhas perguntas pediam. Foram muito mais generosos comigo do que aquilo que eu fui com eles: nem sempre abrindo as minhas perguntas às respostas deles.
Quando fui para a Irlanda do Norte, ia cheia de ideias. Achava que sabia o que era preciso dizer, achava que sabia do conflito, do pós-conflito, que sabia tudo. As ideias deixei-as todas lá. Voltei vazia de ideias, sem saber coisa nenhuma.
Peço desculpa, mas não tenho nenhuma ideia. Seria preciso voltar a Belfast. A partir do dia de ontem, é preciso voltar, e começar o trabalho de novo, e então sim, talvez tivesse uma ideia, uma que fizesse justiça às pessoas da Irlanda do Norte.

25 março, 2007

Janela nova

A minha janela preferida é a janela da minha infância.
É uma janela em pé – para se estar à janela de pé: para ver o mundo ao alto.
É uma porta – abre-se e atravessa-se: vai dar a algum lado.
É um espelho – de corpo inteiro: não mente, nada esconde.
É um filtro – só vejo o que quero e nunca esqueço que a vista do lado de dentro é tão importante como a do lado de fora.
Uso o presente, porque não seria sincera se usasse o passado. Há coisas que não passam.
Durante muito tempo, quando acordava de noite sem reconhecer onde estava, era porque pensava estar nesse quarto.
Durante muito tempo, quando acordava de manhã, esperava ver na parede essa janela.
Até vir para Londres, nunca tinha encontrado uma janela à altura de substituir a janela da minha infância.