15 agosto, 2007

Atravessar a rua

O semáforo fica verde. O motorista do autocarro suspira por si e pelos seus passageiros, e não se mexe. Os condutores dos automóveis mexem ligeiramente o pé direito consolados no ruído movimentado do acelerador. Os peões olham para o autocarro e para os carros parados; olham para o semáforo: o homem está iluminado a vermelho; voltam a olhar para o autocarro e para os carros parados; ninguém atravessa.
Há apenas uma figura que se move, vai a meio da passadeira. Todos os olhos se fixam nas pernas que transbordam dos sapatos e nos braços musculados como pernas fincados nas muletas; e acompanham-na pelas riscas brancas da passadeira, cada uma delas agora transformada numa meta.
E a senhora elegantemente não desvia o olhar. Pelo contrário, é tão difícil ter a oportunidade de olhar as pessoas olhos nos olhos porque nunca estão quietas. A senhora olha-me nos olhos e diz: “Leva-me uma semana a atravessar a rua”; e com um encolher de ombros acrescenta: “Têm que esperar.”
Esperamos. A senhora alcança finalmente o passeio e sorri-me. Talvez tenha sido só impressão minha, mas pareceu-me que o sorriso não era apenas de satisfação por ter conseguido completar mais um troço de viagem, mas de gozo. Poucas pessoas possuem um poder assim: fazer parar Londres.

5 comentários:

Anónimo disse...

Perfeito. Adorei mesmo. ;)

JPD disse...

Uma pontinha de ansiedade sobra desse sorriso triunfal. Ter conseguido atravessar, ter conseguido a espera.

Em Londres é normal;
Em Lisboa é provável;
Em Roma ou qualquer outra cidade italiana -- Não compreendo aquelas hordas de motorizadas a galgarem as passadeiras, a vez dos peões -- seria fatal.

Fica bem!

António Miguel Miranda disse...

Divulgação

Mais um Blog que se tornou um Livro!

Filme da apresentação disponível no YouTube em “Camarada Choco”

www.camaradachoco.blogspot.com

NoKas disse...

:) Ah grande Peão!

Unknown disse...

Muito bom, mesmo.